Desde que iniciei minha carreira na Susi meu objetivo era chegar na Papua, ilha situada no extremo leste da Indonésia, que faz fronteira com a Papua Nova Guiné (PNG Papua New Guine) e os motivos são muitos. Este lugar é formado por um dos terrenos mais desafiadores no mundo para se voar, é uma ilha que tem em seu centro uma cadeia de montanhas de 14.000 a 16.000 pés (por volta de 5.000 metros), que foi colonizada a pouquíssimo tempo, e que em muitos lugares você ainda encontra missionários, educando a população, transmitindo os ensinamentos de Deus, levando suprimentos e conectando aldeias completamente isoladas do mundo, de acesso impossível se não por avião devido sua localização no centro das montanhas, não é a toa que este local é chamado de a última fronteira. Esta ilha foi “anexada” a Indonésia recentemente, 1969, e o povo que aqui habita difere muito do resto da Indonésia, existem muitas diferenças culturais, além de religiosas (católicos em sua maioria aqui) e étnicas.
A Indonésia é famosa internacionalmente pelos seu alto nível de acidentes aeronáuticos, e dentro do país a Papua é o maior vilão.
As diferenças começam nos corredores visuais que dividem a ilha, e os diversos pontos de transmissão compulsórios, devido ao terreno extremo, o tráfego de aeronaves é o maior do país, sendo o único meio de transporte para diversos lugares. Algumas montanhas são tão altas que inviabilizam o voo “direct to” então caminhos são percorridos por dentro dos vales (freeway) e algumas “gaps” ou “pass” são utilizadas para cruzar a montanha ( um ponto mais baixo ou um corte no terreno ou até mesmo um vale formado por um rio). Essas “pass” também compõem os lugares que provavelmente estarão livre de nuvens na maioria das vezes, caso contrário você escolheria uma Gap diferente para cruzar a montanha sem precisar subir a 15.000 e até mesmo 18.000 pés em uma aeronave despressurizada, utilizando oxigênio.
A descida no vale onde a pista se localiza sem duvidas só pode ser feita visualmente, e aí que os riscos deste voo começam a aumentar, devido à altitude e ao clima estes locais dificilmente estarão livre de nuvens, e voar em vales confinados com nuvens às vezes se parece com voar uma aeronave dentro de um túnel, você reduz para a velocidade de Canyon, e coloca alguns flaps, para diminuir seu raio de curva e aumentar sua manobrabilidade. Por isso a operação começa cedo, cinco da manha estamos a caminho do aeroporto, para decolarmos assim que o primeiro raio de sol aparecer. Nossa missão é contra o relógio, a maioria das pistas não é operacional depois das 10 da manhã devido aos ventos de traves e cauda, que farão a missão de pousar em uma pista a 7.000 pés com 700 metros de comprimento e 10% de up slope um tanto quanto difícil e de alto risco. E depois das 10 da manha as passagens (gaps and pass) também começam a fechar e sua vida começa a ficar um pouco mais complicada, na maioria dos dias nós já terminamos os voos para as montanhas as 11 horas no máximo.
Bom se tudo der certo chega a hora de pousar e aí que vem as maiores diferenças do voo nas montanhas, existem dois conceitos aplicados aqui, o KP e o CP, key point e committal point (ponto chave e ponto de comprometimento). Por estar dentro de um vale, ou na encosta das montanhas a elevadas altitudes, a maioria das pistas só tem um sentido de pouso e um de decolagem, e muitas vezes uma arremetida na curta final é impossível pois supera a capacidade do avião, sem considerar que as vezes você está carregado, agora calcula essa inércia com uma pista up slope (ou seja morro acima) com uma cabeceira a 6400 pés e a outra a 6800 pés e o terreno subindo na cabeceira oposta… boa sorte, você vai virar estatística. Por isso existe o key point, um ponto com uma referência no terreno e uma altitude onde você estará completamente configurado para pouso, final checklist completo, velocidade cravada, e onde você vai acessar sua rampa e sua aproximação baseada em um ponto no solo (o ajuste de altímetro pode estar errado então não adianta se basear por ele, e a aproximação em pistas upslope causa ilusões parecendo que você está muito alto na final.
Antes de você atingir o committal point, todos os critérios devem ser cumpridos, você deve checar a pista olhando possíveis animais ou pessoas cruzando a pista. No treinamento, enquanto lia o livro sobre os voos nas montanhas, li a seguinte frase: “You have to look through the chickens and dogs and worry about the pigs and goats.” A pilot operating in Papua.
O committal point vai ser sua última oportunidade de realizar uma arremetida com segurança, depois desse ponto você está comprometido, você tem que pousar não interessa o que acontecer, se você tentar arremeter depois deste ponto você provavelmente irá encontrar um morro, então é preferível que você quebre o avião na pista, vare a pista na cabeceira oposta, ou perca o eixo para algum dos lados: dependendo da pista estará explicado, atropele qualquer cachorro, porco ou pessoa. Dessa maneira você talvez mate somente uma pessoa e não todos á bordo. Não são poucos os acidentes que já aconteceram após tentativas de arremetida na curta final devido ao cruzamento de pessoas, animais ou até mesmo após o toque no solo, no qual o piloto deviria ter enfiado o avião no chão com beta e reverso ainda no ar, para conseguir para antes que os 600 metros de pista acabem e não ter tentado arremeter, matando todos a bordo. Você está pousando num beco sem saída, então não arremeta. É claro que a história muda quando estamos em um aeroporto normal, aí sim, você sempre arremete.
Na hora de decolar a história é diferente também, primeiro você tem que checar todos que estão embarcando na aeronave contra o manifesto de passageiros, estes locais não tem terminal, balança ou detector de metais, então é seu trabalho ver se o peso “bate”, ver se ele não tem uma faca de 30cm na cintura ou uma arma, e com toda a certeza contar cada kilo que está entrando na aeronave. Decolar nas montanhas acima do máximo possível para cada pista é morte certa. Apesar de se decolar morro abaixo na maioria das vezes, as pistas estão a 6000/ 7000 pés e possuem em torno de 700 metros de comprimento, com elevado terreno após a cabeceira, então na sua maioria o peso de decolagem é reduzido, e como nós temos que cancelar passageiros algumas vezes devido a um vento de cauda, ou um dia quente, acredite eles vão tentar mentir o peso algumas vezes para que todos consigam ir, então cheque…
Na decolagem o committal point se aplica novamente, e muitas das pistas não se pode mais abortar a decolagem após 100 – 150 metros na corrida, é morro abaixo, altitude elevada etc etc etc…Ah! E o fim da pista normalmente é um canyon ou uma queda. Então você quer manter os olhos fora da cabine, procurando aqueles benditos porcos ou pessoas que possivelmente vão cruzar seu caminho, e abortar a decolagem antes de atingir o CP, depois disso o mesmo princípio de pouso se aplica, você não aborta, você atropela, você tenta tirar do chão antes, você tenta uma curva de leve, mas você não aborta. Você também quer checar sua velocidade antes de atingir o CP, cada pista vai ter uma velocidade e um ponto como referencia externa na qual você deve ter ex. 50 aumentando ou 60kt aumentando. Porque? Bom, primeiro isso significa que você vai voar e conseguir superar os obstáculos após a pista, segundo, esse é primeiro sinal que pode ser que você deixou algo escapar e o avião está acima do peso para esta pista e você não vai conseguir decolar, ou tem algo de errado com o avião.
Esta pista por exemplo requer curva imediata a esquerda para evitar a pequena montanha em frente, o CP é logo em frente 150m, e você pode perceber as pessoas e o cachorro cruzando tranquilamente a pista, inclusive a queda após o fim da cabeceira. No pouso também, nesta pista você está comprometido na curva base para final, já não existe mais arremetida.
Bom fiz esse vídeo aproximando na pista de Mulia, a mesma que tem a carta de aproximação visual acima.
https://youtu.be/FYVcI4Z6JC8